INTRODUÇÃO 2
TÍTULO: A DESTINAÇÃO 2
AUTORIA 3
PROCEDÊNCIA E OCASIÃO 4
PROPÓSITO 5
UNIDADE 6
TEMA 8
A SUBSTANCIAÇÃO DA DOUTRINA 8
ESTRUTURA 10
Introdução - 1:1-17 11
I. Todos Perdidos - 1:18-3:20 11
II. O Método Divino de Salvação - 3:21-8:39 11
III. Situação dos Judeus e o Conceito do Verdadeiro Israel - 9-11 12
IV. O Resultado Ético da Salvação - 12:1-15:13 13
Conclusão Final - 15:14-33 13
Adendo - 16 13
ANÁLISE TEXTUAL 13
CAPÍTULO 1 13
O TEMA DA EPÍSTOLA 17
TODOS PECARAM 20
CAPÍTULO 2 26
CAPÍTULO 3 37
O MEIO DIVINO DE SALVAÇÃO 42
ROMANOS
Considerada por muitos como a obra prima do apóstolo Paulo, Romanos destaca-se no Novo Testamento por apresentar-nos de forma esmerada, objetiva, e, porque não dizer, suficientemente acadêmica, o plano da redenção. Em suas páginas cristaliza-se a mensagem evangélica da salvação, a doutrina da justificação pela fé. É verdade que este tema não se limita a Romanos. Ele é central também na epístola aos Gálatas. Outros escritos paulinos contém ingredientes dele num ou noutro trecho. Mas em Romanos o tema mereceu uma consideração especial do apóstolo. Ali ele derime dúvidas, confronta os opositores, apresenta de forma irresistível o meio divino e infalível de salvação, e seus resultados. É, de fato, uma obra máscula da pena de Paulo.
O título Aos Romanos denota o destino da epístola, os cristãos de Roma. Como a mensagem chegou ali? Uma antiga tradição atribui a Barnabé o privilégio da primeira pregação em Roma. Outra tradição alude a uma viagem de Pedro a Roma em 42AD. O mais provável, todavia, é que nem Pedro ou outro apóstolo, nem algum antigo pregador de destaque, e muito menos Paulo, tenham sido o fundador da comunidade cristã de Roma (Rom 15:10). Ambrósio, comentarista latino do século IV, lembra que os romanos “sem verem qualquer milagre, ou qualquer dos apóstolos, aceitaram a fé em Cristo.” Seus primeiros membros foram, com toda a probabilidade, conversos do dia do Pentecostes. Eram judeus (Atos 2:10). Quando a epístola foi escrita, a comunidade comportava também um grupo gentio, a maioria, senão todos, ganha direta ou indiretamente por Paulo. Havia entre eles conversos de diferentes localidades visitadas pelo apóstolo, e que tinham se mudado para Roma (Rom 16:4ss). Mas entre os conversos de Paulo havia também judeus (vv. 4, 7, 11).
Em Roma, portanto, havia judeus e gentios cristãos, e isto é evidenciado na própria epístola, onde ambos os grupos são referidos:
„h Judeus - Paulo a eles se dirige - 2:17ss
a saudação final os inclui - 16:3, 7, 11. Além disso há uma inteira
seção que trata dos judeus exclusivamente (caps. 9-11).
„h Gentios - Paulo se dirige a eles igualmente - 11:13ss
A maneira como Paulo divide a raça humana, judeus e gentios, na primeira parte da epístola (1:18-3:20), ganha mais sentido com a composição dupla da comunidade.
O fato de Paulo não se dirigir explicitamente à igreja de Roma, ou a algum líder em particular, e sim a “todos os amados de Deus que estais em Roma” (1:7) é uma possível evidência de que não havia ali uma centralização representativa da fé, como acontecia, por exemplo, em Corinto, e sim algumas congregações às quais o apóstolo enviava agora a sua epístola. Existem igualmente razoáveis evidências de que cópias reduzidas da epístola circularam com a omissão dos termos “que estais em Roma” de 1:7, e “outros, em Roma” de 1:15, o que indicaria que teriam sido enviadas a outras igrejas, situadas numa vasta área no império. Esta idéia é reforçada pelo fato de que o mais antigo manuscrito paulino, o P46 datado do final do II século, registra a doxologia de 16:25-27 na conclusão do capítulo 15, seguida então dos 23 versículos do cap. 16 (o v. 24 parece não ser original). O texto Bizantino, por sua vez, incluiu-a no final do cap. 14.
Segundo o historiador Suetônio, o imperador Cláudio teria decretado a expulsão dos judeus de Roma (cerca de 49AD) devido às instigações de um tal Chrestus, figura enigmática, que para alguns estudiosos seria uma variante de Christus. Se realmente esta referência histórica pode ser aplicada a Jesus e Seus seguidores, temos que convir que os cristãos romanos eram possuidores de uma fé altamente dinâmica e missionária. O apóstolo, com efeito, elogia o nível espiritual daqueles crentes (1:8; l5:14; 16:19).
A autoria paulina de Romanos praticamente não é contestada, salvo por alguns elementos da linha ultra-radical do liberalismo teológico. Na verdade, negar a Paulo a autoria de Romanos é negar-lhe a autoria de qualquer documento do Novo Testamento. Esta foi a posição adotada por van Manen, teólogo holandês do princípio deste século.
Todas as evidências externas e internas apontam para Paulo como autor. Nas palavras de F. W. Beare, “existem claras evidências de seu uso por outros escritores cristãos antes do final do I século e na primeira metade do II...; e antes do final do II século é alistada e citada sob o nome de Paulo. Cada listagem das Escrituras cristãs que tem chegado até nós inclui Romanos entre as cartas de Paulo. A evidência externa de autenticidade não poderia ser mais forte, e a evidênica interna suporta plenamente a tradição. A carta pertence à primeira geração da igreja, e existe muito nela que não poderia ser razoavelmente relacionado a qualquer situação posterior; a linguagem inclui grupos de palavras e frases que são característicamente do vocabulário de Paulo; e não existe nada que sugira a mentalidade ou o treino de um escritor que não pudesse ser identificado com o apóstolo.” (The Interpreter’s Dictionary of the Bible, vol. 4, p. 112).
Algumas evidências internas deixam claro onde Paulo se encontrava ao escrever Romanos:
(1) ele estava para ir a Jerusalém com as ofertas para os pobres da igreja (15:25, 26).
(2) as ofertas era da Macedônia e Acaia. Paulo deveria estar nas proximidades desses locais.
(3) ele cita Cencréia, a região do porto de Corinto, recomendando a Febe, diaconiza daquela igreja e possível portadora da epístola (16:1).
(4) Gaio era o anfitrião de Paulo (16:23); o apóstolo o batisara em Corinto (I Cor 1:14)
Concluimos que Paulo escreveu aos Romanos da casa de Gaio em Corinto.
Quanto à ocasião, devemos lembrar que Paulo visitou Corinto em sua segunda viagem, ali permanecendo por um ano e meio (Atos 18:11). Voltou a Corinto na terceira viagem, desta vez permanecendo ali 3 meses (Atos 20:2, 3). Viajou então para Jerusalém, passando pela Macedônia (Filipos), de onde partiu depois dos pães asmos (Atos 20:6). Teria, portanto, saído de Corinto mais ou menos em março.
Paulo diz que ia a Jerusalém para levar as ofertas trazidas desde a Macedônia e Acaia (Atos 24:17), item referido em Romanos. Somos levados a crer que a epístola emergiu entre janeiro e março. De que ano? Entre 55 e 58AD, com preferência para 57 (fim de dezembro) ou início de 58.
A razão porque Paulo escreveu aos crentes de Roma difere daquela que motivou outras de suas epístolas. I Coríntios e Gálatas, por exemplo, foram escritas para defrontar problemas existentes nas respectivas igrejas, a primeira de cunho mais pastoral e a segunda de cunho mais teológico. Paulo não escreveu Romanos com este objetivo, embora não ignorasse a existência de problemas de menor grandeza entre aqueles crentes e lhes apresentasse o seu aconselhamento apostólico (cap. 14).
O propósito de lhes escrever fundamentou-se em sua perspectiva missionária. Ele entendeu que havia praticamente encerrado seu plano de trabalho na Ásia Menor e na região egeana (Grécia e Macedônia) (15:23) e agora alimentava a expectativa de penetrar em território virgem, principalmente em direção ao ocidente mais distante. A Espanha, a província ocidental romana mais afastada, era vista por ele com especial interesse (15:24). Ele considerou Roma não um fim em si mesmo, mas um meio de cumprir as novas aspirações missionárias, o trampolim ideal de onde poderia saltar para as novas conquistas de seu ministério. Ele sabia quão decisivo era o apoio dos crentes de Roma para a consecução de seu ideal. Ele nunca estivera na capital do império e não conhecia a maior parte dos cristão ali residentes. Uma carta proveria a necessária aproximação do apóstolo a estes crentes, e induzi-los-ia a compartilhar de seu interesse, preparando-os para recebê-lo e apoiá-lo em seu projeto.
Mas por que Paulo abordou justamente nesta epístola, e da maneira como o fez, o tema da justificação pela fé? Como isto se relaciona com sua projetada missão?
Devemos observar como Paulo, na epístola, se defende ciosamente de falsas acusações da parte de seus adversários (3:8, 31; 6:1). Mediante interpretações distorcidas de seu ensino, engendravam conclusões absurdas que, atribuídas a ele, certamente resultavam em mal-entendidos e o colocavam em situação desfavorável junto aos companheiros de fé. É provável que Paulo temesse que boatos negativos acerca de sua mensagem estavam sendo espalhados em Roma, e que ele estivesse sendo vítima de uma falso conceito, tal como mais tarde ele verificou estar acontecendo entre os crentes de Jerusalém (Atos 21:20, 21). Como então poderia contar com o desejado apoio daqueles irmãos? Eles tinham que ser esclarecidos. Assim escreveu-lhes, expondo da forma mais detalhada possível a sua principal mensagem, precisamente aquela que mais controvérsia suscitava, levando-os a conhecer por sua própria voz e pena a substância do seu ensino, contestando à altura as acusações que lhe eram feitas, e deixando ver que ele apenas cumpria a missão que o próprio Senhor lhe confiara (15:15-21). Ele não era um traidor de seus compatriotas, muito menos da fé. Bem ao contrário, amava-os a ponto de estar disposto a abrir mão da salvação, se isto fosse de algum benefício para eles (9:1-3). Como prova adicional de seu interesse pelos judeus, mencionou estar indo a Jerusalém portando uma oferta arrecadada entre os gentios por sua iniciativa, para fazer face às necessidades deles (15:25-27). Ademais, esclareceu que sua mensagem não era incompatível com o plano que Deus sempre teve com Israel (caps. 9-11).
É possível também que Paulo olhasse para Roma como uma futura central evangelística, de onde a mensagem poderia alcançar os rincões mais distantes do mundo. Beare expõe esta hipótese da seguinte forma: “Uma estratégica visão parece tê-lo guiado no estabelecimento de igrejas-chaves em toda a sua carreira missionária; não poderia a mesma visão estratégica tê-lo capacitado a perceber que a principal cidade do mundo deveria brevemente se tornar a capital do crescente império de Cristo? Até certo ponto, então, a carta aos romanos partilharia da natureza de uma encíclica, endereçada urbi et orbi, dando permanente expressão ao claro entendimento de Paulo quanto à natureza do evangelho, de sua relação ao Velho Testamento e ao judaismo da lei, e de seu poder de trazer o todo da vida humana num novo relacionamento com Deus, com novos poderes e glórias.” ( p. 114).
A questão da unidade vem à tona quando se leva em conta os problemas textuais da epístola. Já sabemos de cópias reduzidas que circularam entre diferentes igrejas, e isto possivelmente tão cedo quanto o inicio da década 60 AD. Referências a Roma, bem como as saudações pessoais do apóstolo teriam sido omitidas por não se aplicarem a estas igrejas. Estas cópias deveriam, portanto, terminar em 15:33 mais a doxologia de 16:25-27.
Uma edição ainda mais reduzida, conforme aparece no texto Bizantino, parece ter circulado posteriormente, a qual se encerrava em 14:23 seguido da referida doxologia. Outros manuscritos mantém esta posição da doxologia e a repetem ao final do cap. 16. Na verdade, todos os manuscritos conhecidos incluem o cap. 16, mas a antecipação da doxologia, em alguns documentos, para o fim do cap. 14, ou do 15 conforme o caso, implica na existência destas cópias reduzidas. A redução mais significativa tem sido geralmente atribuída a Marcion que teria avaliado o cap. 15 como uma interpolação feita por elementos judaizantes, em vista deste capítulo valorizar o Velho Testamento. Já o cap. 16 seria inconsequente para os interesses do hereje, e ele também o despresou, com execessão da doxologia.
Tem sido igualmente alegado que seria mais próprio que o cap. 16 fosse destinado a uma outra igreja, provavelmente a de Éfeso, considerando incluir uma recomendação em favor de uma senhora cristã por nome Febe (v. 1) e uma série de saudações pessoais (vv. 3-16), improváveis de serem feitas a uma comunidade desconhecida do apóstolo. A isto se ajunta a referência a Áquila e Priscila (v. 3), que haviam sido expulsos de Roma e residiram um tempo em Éfeso, e a Epêneto, referido como “primícias da Ásia” (v. 5), uma recomendação contra falsos irmãos (vv. 17, 18), e mais o fato de que o cap. 15 conclui como uma saudação final.
Estas evidências, todavia, são de pequena monta para se questionar a unidade plena da epístola. O referido capítulo deve ser tido como um adendo, muito próprio como recurso literário mesmo naqueles tempos. Embora Paulo não conhecesse a comunidade cristã romana, não significa que em seu seio não houvesse amigos e conhecidos, filhos na fé, que haviam se transferido para Roma, entre eles Epêneto. Lembramos que seria mais natural que tais específicas referências fossem dirigidas a uma comunidade desconhecida. Expulsos de Roma, Áquila e Priscila não fixaram residência em um único ponto, e muito provavelmente retornaram para lá quando o decreto de Cláudio caducou, considerando que haviam sido companheiros de Paulo no evangelismo e sabiam de seu plano de visitar aquela cidade. Além disso, um bom número do nomes referidos no capítulo são latinos. A recomendação contra falsos irmãos pode muito bem estar vinculada à questão das acusações que eram feitas contra Paulo. Finalmente, sôme-se a tudo isto o fato de que todos os manuscritos conhecidos registram o cap. 16 como parte integrante da epístola.
Acreditamos que Romanos, na forma como aparece em nossas Bíblias, é um documento único, que proveio das inspiradas mãos de Paulo.
O tema central da epístola é a justificação pela fé (1:16, 17), que Paulo não desenvolve como simples teoria. Essa doutrina é, antes de tudo, a exposição de sua própria experiência, desfrutada a partir do encontro com Cristo na estrada de Damasco. “Quando Paulo desdobra a antítese entre a graça e a lei, a fé e as obras, ele escreve sobre uma antítese que tem sido refletida no contraste entre os dois períodos na história de sua própria vida, períodos divididos pela experiência da estrada de Damasco.” (J. Murray, The Epistle to the Romans, p. XIV). Antes Saulo, o fariseu dos fariseus, zeloso da lei e das tradições rabínicas, um lobo feroz, o líder da intolerância e da perseguição aos crentes em Jesus. Depois uma humilde ovelha seguidora do bom Pastor e transformado por Este no apóstolo Paulo, pregador do evangelho e ganhador de almas.
Como pôde ele compreender o maravilhoso processo da justificação pela fé? Através de uma profunda reflexão nas duas fases de sua própria vida. Quem ele era antes de Damasco, e quem passou a ser depois foi decisivo para que estruturasse o seu ensino. Em outros termos, o que Cristo veio a significar para ele fruiu em palavras na contextualização da doutrina.
O encontro com Jesus modificou-lhe a vida, sua compreensão das Escrituras, seu relacionamento com Deus, com o próximo e consigo mesmo. A vida que agora vivia não era propriamente sua (Gál 2:20). Nada mais tinha real valor, a não ser “em Cristo”, o Qual constituía tudo nele, por ele e para ele.
Antes de sua conversão, todos os interesses de Paulo convergiam para a lei. Se ele perseguia e mesmo executava os cristãos era por amor à lei. Na estrada de Damasco, então, ele se converteu, e Cristo passou a ser o centro de sua vida. Ali Paulo entendeu que jamais a lei, ou qualquer outra coisa, por mais importante e santa que fosse, deveria ocupar o lugar que pertence apenas a Cristo. Ali entendeu que a lei, no plano do evangelho, deve desempenhar uma função subordinada a Cristo, isto é,
- realçar a malignidade do pecado
- atestar o estado de perdição do pecador
- indicar a Jesus como o único meio de salvação
Quando alguém permite à lei ocupar o lugar que é de Cristo, ele tenta a salvação pelas obras, e isso é legalismo, o que significa que (1) a malignidade do pecado é encoberta, pois a pessoa se considera santo aos seus próprios olhos; consequentemente (2) Cristo não é exaltado como Salvador, e fatalmente (3) o pecador continua totalmente perdido;
Todo esse falso sistema de salvação Paulo qualificou de anátema (Gál 1:8, 9); o legalismo é maldição porque desonra a Deus, causa a ruína humana, e conspira contra a própria lei, pois a coloca no lugar de Cristo, e qualquer coisa que ocupe o lugar de Cristo não poderá permanecer.
Mas quando Cristo ocupa Seu legítimo lugar, quando Ele Se torna o centro gravitacional da vida, a lei é colocada no seu merecido pedestal, é devidamente dignificada, pois a glória da lei é exaltar a Cristo como único soberano Salvador.
Assim, a fé que justifica não é algo que extingue a lei (Rom 3:31), mas que a coloca no seu lugar. Pessoas que vivem por aí afirmando que a Lei já passou, não sabem o que estão dizendo. Muito ao contrário, o verdadeiro cristianismo é a perenização da lei, porque atribui a ela o seu correto valor, e função.
Consciente desse fato, e tendo diante de si a visão do crucificado e ao mesmo tempo glorificado Senhor, Paulo foi suficientemente inspirado para nos legar o seu tema predominante, a justificação pela fé.
Paulo antes perseguia os cristãos porque afirmavam que um crucificado fora exaltado por Deus e tornara-se Messias e Senhor. Isto, aos ouvidos do fariseu, soava como uma blasfêmia. O que era um crucificado senão um transgressor da lei, amaldiçoado por Deus e pelos homens, e assim condenado a morrer? Portanto, pensava Paulo (ou melhor, Saulo), a seita era uma afronta à lei, e tinha de ser erradicada, devesse a honra da lei ser mantida.
Antes da conversão Paulo tinha apenas uma certeza quanto a Jesus: que Ele fora crucificado. Em outros termos, ele conhecia a Jesus apenas “segundo a carne” (II Cor 5:16). Mas agora Paulo sabia que Jesus ressuscitara e fora glorificado por Deus. Então os cristãos estavam certos!
De que modo conciliar os dois fatos? Meditando na tensão entre a condenação e a glorificação de Jesus (duas coisas opostas), Paulo acabou descobrindo a grande verdade da justificação pela fé:
(1) Cristo fora condenado não por pecados que houvesse cometido diante de Deus ou dos homens;
(2) Cristo tomara sobre Si, diante da justiça divina, a responsabilidade pelos pecados dos homens, e pagara o seu resgate na cruz, satisfazendo assim o requerimento da justiça (II Cor 5:21);
(3) o benefício salvífico do sacrifício de Cristo poderia agora ser aplicado a todo pecador que cresse nEle, aceitando o Seu sacrifício; tal fato permitiria que Deus, sem abrir mão de Sua justiça, justificasse o crente (Rom 3:26);
(4) portanto, nem a condenação de Jesus era incompatível com Sua glorificação, nem a glorificação de Jesus era incompatível com Sua condenação.
Depois que Paulo entendeu tudo isso, ou melhor dizendo, experimentou tudo isso, a saber:
- que seus pecados haviam sido colocados em Jesus;
- que Jesus morrera em seu lugar; e que sua dívida houvera sido paga no Calvário
- que ele, Paulo, fora agora perdoado por Deus, recebido por Ele como filho, e integrado na família de Deus;
- que ele estava justificado por Deus e em paz com Ele, e que esta experiência era tão maravilhosa que Paulo podia dizer com toda a confiança: “Se é Deus que nos justifica quem nos condenará?” (Rom 8:33, 34), e “quem nos separará do amor de Deus que está em Cristo Jesus?” (vv 35, 39);
Depois de experimentar tudo isso, sabia afinal o que é ser justificado por Deus mediante a fé, e legar-nos a sua maravilhosa doutrina.
A abordagem do tema básico, a justificação pela fé (1:16, 17), sugere a estrutura da epístola. Temas decorrentes do tema básico emergem naturalmente conforme a exposição da doutrina se processa. Estes encabeçam os títulos e sub-títulos das divisões em que a mensagem de Romanos pode ser estruturada. Tenhamos em mente que nesta epístola o apóstolo, embora não esgote o seu preponderante assunto, apresenta-o de forma ampla e definida em suas implicações.
Por exemplo, o conteúdo de 9-11, a nosso ver, não é parentético, e portanto não deveria ser desvinculado do contexto da justificação pela fé. Este capítulos não constituem uma digressão literária do apóstolo, como alguns imaginam. Ele não se desvia do curso normal de suas considerações, mesmo porque ingredientes da doutrina são encontrados na seção (9:30-32; 10:1-13). Após explicar o meio divino de salvação e suas benditas consequências, e uma vez cumprido o doloroso dever de evidenciar que os judeus lamentavelmente haviam preferido contrapor o plano de Deus com um sistema escuso de salvação, o que os tornava tão perdidos quanto os gentios, nada mais justo que expusesse agora o propósito de Deus com eles, e se antecipasse à indagação que certamente se faria ouvir: “se as coisas são desse modo, então o que será de Israel? e as promessas a ele dirigidas? e o concerto de Deus com ele?”, e coisas do tipo. O apóstolo esclarece que somente através da justificação pela fé em Jesus poderão os judeus, a exemplo de qualquer outro povo, atingir o ideal de Deus.
Igualmente o tratamento ético elaborado em seguida (12:1-15:13) é parte integrante da doutrina, como também se observa na epístola aos Gálatas (ver 5:13-6:10). A fé que justifica é “a fé que atua pelo amor” (Gál 5:6), e os frutos dela devem ser vistos em todo o relacionamento humano. Romanos é tanto uma unidade literária quanto temática.
O seguinte esboço é sugerido como uma tentativa de se estabelecer a estrutura da epístola:
„h Saudação inicial - vv. 1-15
„h Tema - vv. 16-17
„h Gentios: degeneração - 1:18-32
„h Judeus: legalismo - 2:1-3:8
„h Conclusão: judeus e gentios estão perdidos - 3:9-20
„h Justificação: passado - 3:21-5:21
„h a provisão divina - 3:21-31
„h o testemunho do Velho Testamento - 4
„h as bênçãos provindas do plano de Deus: reconciliação e esperança - 5:1-11
„h Adão e Cristo, cabeças de humanidade - 5:12-21
„h Santificação: presente - 6:1-8:17
„h mortos para o pecado - 6:1-15
„h libertados do pecado - 6:1-23
„h a morte e a libertação ilustradas - 7:1-6
„h a incapacidade humana e a capacidade divina - 7:7-25
„h a obra do Espírito no processo da santificação - 8:1-17
„h Glorificação: futuro - 8:18-28
„h o que aguardamos - vv. 18-25
„h o apoio divino neste tempo de transição - vv. 26-28
„h Conclusão - 8:29-39
„h todo o plano sumarizado - 8:29, 30
„h conhecimento, predestinação, vocação, justificação, glorificação
„h a exultação e o triunfo da fé - 8:31-39
„h Prólogo - 9:1-5
„h o sentimento do apóstolo - vv. 1-3
„h os privilégios de Israel - vv. 4, 5
„h Os verdadeiros descendentes de Abraão - 9:6-10
„h A soberania de Deus - 9:11-23
„h Deus, os judeus e os gentios: salvação disponível a todos - 9:24-33
„h A atitude dos judeus: contrapõem o método divino com um método humano de salvação - 10:1-15
„h A resposta de Deus: Ele contrapõe os judeus com os gentios - 10:16-21
„h O verdadeiro Israel: o remanescente de ontem e de hoje - 11:1-5
„h A eleição da graça: o tropeço dos judeus é oportunidade para os gentios - 11:6-24
„h O verdadeiro Israel: o remanescente de amanhã - 11:25-32
„h Conclusão - o louvor apostólico - 11:33-36
„h O cristão e Deus - 12:1, 2 (implícitos os 4 primeiros mandamentos)
„h O cristão e si mesmo - 12:3-8
„h O cristão e o próximo - 12:9-21 (explícitos os 6 últimos mandamentos)
„h O cristão e o mundo - 13:1-14
„h as autoridades - vv. 1-7
„h o ser humano - vv. 8-10
„h o pecado - vv. 11-14
„h O cristão e a Igreja - 14:1-15:13
„h companheiros de fé - 14:1-23
„h Conclusão: o exemplo de Cristo - 15:1-13
„h Referências pessoais - vv. 14-29
„h Recomendações - vv. 30-32
„h A bênção apostólica - v. 33
„h Apresentação de Febe - vv. 1, 2
„h Saudações a crentes específicos - vv. 3-16
„h Recomendações - vv. 17-20
„h Saudações da parte dos companheiros de Paulo - vv. 21-24
„h Fechamento solene: a doxologia - vv. 25-27
SAUDAÇÃO E INTRODUÇÃO
v. 1 - “servo” - doulos: escravo. Nenhuma modéstia aqui, mas uma afirmação do chamado divino. “Apóstolo” - enviado - cf. “vai” e “Eu te enviarei” de Atos 22:21. O ato de enviar visa o cumprimento de uma missão, a pregação do “evangelho”, definido no v. 16.
“separado” - o termo fariseu (o que Paulo era antes - Atos 26:5), significa, como já vimos, “os separados”. O verdadeiro sentido do termo é achado na experiência cristã.
v. 2 - Rapidamente o apóstolo deixa de falar de si para apresentar sua primeira declaração cristológica:
“prometido” - a dispensação do VT pode ser chamada de a dispensação da promessa, a qual tem a ver especificamente com a manifestação de Jesus Cristo em Sua primeira vinda, com todas as suas implicações. Nesse caso a nova dispensação pode ser considerada “a do cumprimento da promessa.” De fato o que ainda falta ser cumprido na História para consumar o plano da redenção deve ser visto como já realizado em Jesus.
“Sagradas Escrituras” - o VT. A menção de profetas não restringe o VT a apenas uma de suas partes. Todo ele testefica da redenção em Cristo (3:21):
LEI - Experiência de Abraão - 4:1-3. 9-25
PROFETAS - Habacuque - 1:17
ESCRITOS - Experiência de Davi - 4:4-8
vv. 3, 4 - “Filho de Davi”...“Filho de Deus” - as duas fases do messiado de Jesus: em fraqueza e em poder, ou, antes e após a ressurreição. Este enunciado cristológico pode ser assim estabelecido:
HUMILHAÇÃO |
EXALTAÇÃO |
Filho de Davi |
Filho de Deus |
“F I L H O” |
|
v. 3 |
v. 4 |
ENCARNADO |
RESSURRETO |
“veio” |
“poderosamente demonstrado” |
NASCIMENTO |
RESSURREIÇÃO |
“segundo a carne” |
“segundo o Espírito” |
descendência de Davi |
ressurreição dos mortos |
JESUS CRISTO NOSSO SENHOR |
v. 5 - logo após o enunciado cristológico, Paulo apresenta um enunciado do ministério:
O MEIO - Jesus (Aquele que convocou, que arregimentou a Paulo)
A FONTE E O RECURSO - a graça
O INSTRUMENTO - “apostolado”
A RAZÃO - “por amor do Seu nome”. A fidelidade de Deus é o fundamento do Seu próprio caráter. O Seu amor por nós é em resultado de ser Ele amor.
O OBJETIVO - “obediência por fé entre todos os gentios”
(assim o ministério de Paulo é enunciado por ele mesmo)
“viemos” - possivelmente plural de modéstia; ou ele está se referindo a ele e os demais apóstolos; ou ele inclui também seus companheiros.
v. 6 - “sois” - boa parte da igreja de Roma era composta de gentios
v. 7 - “a todos” - judeus e gentios indistintamente formam a igreja de Roma. A eles Paulo se dirige.
“chamados” - CAUSA - um ato de Deus, a exemplo do que ocorrera com Paulo (v. 1).
“para serdes santos” - EFEITO - santo tem o sentido de separado (idéia também antes relacionada com Paulo).
v. 8 - “meu Deus” - Deus é íntimo de Paulo, e Paulo é íntimo de Deus (Atos 27:23). Assim a intimidade é mútua.
“mediante Jesus Cristo” - Ele está sempre envolvido.
“todos nós” - Paulo não conhecia a maioria dos membros da igreja de Roma. Os laços de amor fraternal não se restringem aos de nosso conhecimentos pessoal.
“vossa fé” - o sentido é objetivo e não subjetivo. Paulo não está dizendo que a fé cristã é proclamada em todo o mundo, mas que a qualidade de fé dos cristãos romanos é apreciada por todos. A gratidão de Paulo pela fé dos romanos demonstra que esta é um dom de Deus.
v. 9 - “sirvo em meu espírito” - o ministério externo de Paulo é um eco de sua submissão íntima a Deus. A religião de Paulo é antes de tudo a do coração. O mero cumprimento de formas cerimonialística não tem sentido.
“minha testemunha - quase que um juramento
“faço menção” - oração por uma igreja que não conhecia
v. 10 - “minhas orações” - Paulo orava pelas igrejas que conhecia e pelas que não conhecia, quando iam bem e quando não iam bem.
“vontade de Deus”- não decreto mas aquiescência ou providência
v. 11 - “repartir convosco” - o ministro que cumpre devidamente o ministério não faz outra coisa. “Partilhar”, todavia, é o dever de todo o cristão. Tanto que Paulo espera que a igreja partilhe alguma coisa com ele (v. 12).
“confirmados” - objetivo de qualquer dom espiritual, que ele acabara de mencionar. Confirmação é obra divina (16:25).
v. 12 - “reciprocamente” - “fé mútua” - o ministro reparte a bênção com a igreja, mas recebe dela uma bênção: “nos confortemos”
v. 13 - “impedido” - ver a razão em 15:20-22. A razão não era outra coisa senão o próprio ministério.
“algum fruto” - ele queria evangelizar também em Roma, mas dava prioridade aos lugares virgens.
v. 14 - “devedor” - o verdadeiro ministro sente a responsabilidade pelos perdidos não importa quem sejam. Ele disse: “sobre mim pesa a obrigação de anunciar o evangelho” (I Cor 9:16, 17).
v. 15 - “estou pronto” - apesar de dar prioridade aos lugares não evangelizados, Paulo sente ser seu dever pregar também em Roma e em qualquer outro lugar já evangelizado. Mas ele não iria fazer valer sua própria vontade; esperaria pelo Espírito Santo e Sua providência e direção (vv. 9-11, 13).
v. 16 - “pois não me envergonho”. O v. 16 é continuação natural do v. 15. Ele estava “pronto” em qualquer tempo e circunstância a pregar porque não se envergonhava do evangelho. Em qualquer época quem desejou algum motivo para se envergonhar do evangelho encontrou. No tempo de Paulo era “ESCÂNDALO PARA OS JUDEUS” e “LOUCURA PARA OS GREGOS” (I Cor 1:23. Ver também Mar 8:38 e I Tim 1:8).
“porque é o poder de Deus” - ver I Cor 1:18. Aqui temos outra cláusula causativa.
dynamis - (de onde vem a palavra dinamite) - PODER. Esta é a definição paulina do evangelho. Ver Heb 4:12 - a mensagem do evangelho é a própria PALAVRA DE DEUS, poderosa.
Como o poder do evangelho se manifesta? “‘Não por força nem por violência’, diz o Senhor, ‘mas pelo meu Espírito’” (Zac 4:6). Não é o poder da riqueza, ou da espada, ou da sabedoria humana (I Cor 2:1-5). Mas o poder da lágrima, do gemido, do apelo enternecido pelo Espírito Santo, o poder da humildade e do amor.
“salvação” - negativamente “do pecado e da morte”, e positivamente “para uma vida de justiça”. Fundamentado sempre no evento da cruz o evangelho propõe a salvação em termos de morte e ressurreição. Nesse duplo aspecto se concretiza a salvação.
“de todo aquele que crê” - o que Deus fez é tudo, mas é requerida a resposta humana. Fé, que por sua vez é dom de Deus, vem pelo ouvir a Palavra de Deus - 10:17. Assim, mesmo a resposta humana é ainda operação divina.
“primeiro do judeu” - Prioridade dos judeus se deve ao fato de a salvação provir deles (João 4:22). Todas as riquezas estendidas aos gentios primeiramente lhes pertencem, inclusive as “promessas” (3:1, 2; 9:4, 5). “Promessa” é a primeira forma em que o evangelho é proclamado (1:2).
v. 17 - “justiça de Deus”, não tanto o atributo da justiça, a retidão divina, mas a justiça salvífica de Deus. Todavia o atributo da justiça divina é realçado no processo da salvação do pecador (3:26). Assim a “justiça de Deus” tem a ver com o SER de Deus e o FAZER de Deus.
“A justiça de Deus” é o meio de salvação e é apresentada em contraposição à injustiça humana (devidamente conceituada na exposição dos gentios e sua condição - vv. 18-32) e à justiça humana (devidamente conceituada na exposição dos judeus e de sua condição -- 2:1-3:20) e que é tão injusta como a injustiça humana (2:17-24).
“se revela” - O evangelho é basicamente a revelação de Deus e Seu propósito no evento histórico da encarnação. CRISTO e EVANGELHO se equivalem (ver I Cor 1:16, 23, 24; 2:1, 2). Mas a revelação feita há 1900 anos em Jesus Cristo precisa se repetir na experiência do homem: “se revela no evangelho de fé em fé”, e a fé se verifica no homem. Cada conversão exibe o poder salvífico da justiça de Deus.
“de fé em fé” - ek písteos eis pístin: de fé para fé. O que esta fórmula significa?
(1) não desdobramento - não fé que se desdobra, que aumenta, que se multiplica, embora essa idéia não seja totalmente estranha para Paulo (ver Fil 3:7-14). Lutero dizia: de uma fé fraca para uma fé forte. Hoje alguns afirmam: fé como convicção deve avançar para fé como sentimento. Não se trata disso.
(2) não transferência. Não é a fé que passa, por exemplo, do pregador para os ouvintes.
(3) não permuta. Menos ainda é a idéia de mudança do objeto da fé: fé na lei que é permutada para fé no evangelho (conceito de Tertuliano), ou fé do Antigo Testamento para a fé do Novo Testamento (conceito de Orígenes).
(4) não indução. Não seria também da fidelidade de Deus para a fé no homem, embora isso também seja verdade. É pela fidelidade de Deus que a fé finalmente se verifica no homem. Hab 2:4 na LXX registra que o justo viverá pela fidelidade de Deus (lit. “Minha fé” ou “fidelidade”). Mas não há nenhuma garantia que Paulo tivesse em mente o texto da LXX aqui.
(5) não continuidade na fé. A idéia principal não é nem mesmo a fé que permanece, que continua, fé perseverante. É verdade que um homem sem fé hoje não pode contar com a fé que teve ontem. Mas não é isso o que Paulo tem em mente aqui.
(6) fé como único meio. Esta é a idéia aqui: tudo tem que ser pela fé. A fé está no começo, no prosseguimento e na conclusão do processo redentivo de Deus (Heb 12:2: “Jesus é o autor e o consumador da fé). Qualquer lance de nossa experiência cristã tem que ser pela fé. É a fé indo (ek) e vindo (eis); todo o caminho é palmilhado pela fé. TUDO TEM QUE SER PELA FÉ, PORQUE O QUE NÃO É POR FÉ É PECADO (14:23). Não há conflito, para Paulo, entre fé e obras, salvo se estas não são produzidas pela fé, não são oriundas dela.
“o justo viverá pela fé” - citação de Hab 2:4. Esse texto aparece mais duas vezes no Novo Testamento: Gál 3:11 e Heb 10:38. Qual o contexto específico em cada citação?
O contexto da citação em Hebreus é “perseverança”. O texto é citado quase que por inteiro porque a aplicação em Hebreus se aproxima daquela em Habacuque com a diferença de que em Hebreus o enfoque é a volta de Jesus e o fim de todas as coisas enquanto que em Habacuque a referência é o cativeiro babilônico. Tanto no texto-fonte como na citação termo poderia ser traduzido como “fidelidade”.
O contexto em Gálatas se aproxima ao de Romanos e a melhor versão para o termo seria “fé” e não “fidelidade” (embora aquela determine esta). Mas desde que Paulo aos Gálatas contrasta “fé” com “observâncias legais” parece que o sentido melhor do texto de Habacuque ali referido seria mesmo “o justo viverá pela fé”, enquanto que em Romanos, considerando que o apóstolo insiste na fé como meio de justificação, o sentido seria melhor exposto assim: “o justo por fé, viverá”.
4 coisas em Rom 1:16, 17: (1) Poder de Deus (2) Salvação (3) Revelação (4) Justiça de Deus.
O Velho Testamento é o fundamento desse texto paulino: Sal 98:1,2; Isa 46:13; 51:5-8; 56:1; 62:1; 61:10, são evocados aqui, entre outros textos, e além do texto literealmente citado. São sinônimos: justiça de Deus, salvação de Deus, revelar justiça e operar salvação. A revelação é dinâmica; a justiça é revelada em ação e operação salvíficas. No evangelho se consuma a ação de Deus.
PRIMEIRA GRANDE DIVISÃO DA HUMANIDADE: OS GENTIOS - 1:18-32
v. 18 - “ira de Deus” - em antítese com justiça de Deus no v. 17. A justiça divina se manifesta tanto através da graça com da ira. Deus é total amor voltado à justiça e total ódio voltado contra o pecado.
A justiça de Deus no sentido salvífico é a provisão por Ele adotada através da graça para fazer face à necessidade da qual a ira de Deus é a manifestação.
Graça Ira
Justiça salvífica Justiça Retribuitiva
Livramento da ira Aplicação da ira
“ira” - não apenas a punição do mal. Menos ainda a mera zanga, raiva, emocionalismo, capricho, mas antes de tudo a reação de Deus contra aquilo que é contraditório ao Seu próprio caráter santo. Denota a indignação de Deus, o Seu desprazer pelo pecado. O DESPRAZER DE DEUS CONTRA TUDO O QUE FOGE AO PADRÃO DE SEU CARÁTER.
“se revela” - a mesma construção do v. 17. Há uma revelação dinâmica expressada em ambos os versos:
Justiça de Deus - “se revela” Ira de Deus - “se revela”
Vida de Jesus - (salvação do que crê) Ser humano
Plena santidade Degenerescência
Inflexão penal (o ato de infligir a punição) deve ser observado como o exercicio da ira de Deus sobre o ímpio. O verbo revelar se apresenta no tempo presente: a ira de Deus não espera apenas pelo juízo final no futuro mas ela já opera agora. A PRÓPRIA SITUAÇÃO DE DEGENERESCÊNCIA A QUE OS GENTIOS SE LANÇAM, EXPOSTA NOS VERSOS SEGUINTES, DEVE SER CONSIDERADA COMO JULGAMENTOS INFLIGIDOS SOBRE ELES (cf. vv. 24, 26, 28, onde é dito que Deus os entregou).
PECADO BÁSICO (ou causativo): IMPIEDADE, degeneração de caráter religioso: vv. 19-23, 25, 28a
PECADO CONSEQUENTE: PERVERSÃO, degeneração de caráter moral: vv. 21, 22, 24, 26, 27, 28b-31
A segunda classe de pecado segue como consequência da primeira, e é vista como uma revelação da aplicação da ira divina. Uma religião pervertida leva a uma moral pervertida. “Como eles se tornam os que os fazem, e todos os que neles confiam” (Sal 135:18). O salmista está falando da falsa adoração. Cf. v. 23 com vv. 26, 27. Um relacionamento erroneo com Deus é a causa última da corrupção humana. Veja a tabela:
Texto Pecado Básico Impiedade |
Texto Pecado Consequente Perversão |
||
v. 21 |
Não glorificaram a Deus, nem Lhe deram graças |
vv. 21, 22 |
Tornaram-se nulos em seus próprios raciocíneos; o coração se obscureceu e tornaram-se loucos ao julgarem serem sábios |
v. 23 |
Mudaram a glória de Deus [toca o íntimo e o exterior] na semelhança de coisas corruptíveis [toca apenas o exterior] |
v. 24 |
Deus os entregou à imundícia, pelas concupiscências dos seus corações [tem a ver com o íntimo], para desonrarem os seus corpos [exterior] |
v. 25 |
Mudaram a verdade em mentira Adoraram e serviram a criatura em lugar do Criador |
vv. 26, 27 |
Deus os entregou a paixões infames: lesbianismo e homosexualismo |
v. 28 |
Desprezaram o conhecimento de Deus |
vv. 28-31 |
Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes (ver a lista nos vv. 29-31) |
Observação: A ira divina é vista no fato de Deus “os entregar” (vv. 24, 26, 28) |
“detém” - sentido de restringir, reprimir, como em II Tess 2:6, 7. Não dão livre curso à verdade em suas vidas.
“verdade pela injustiça” - a revelação natural é amesquinhada pela situação do homem no pecado. “Pela injustiça”, sentido instrumental, isto é, a injustiça é o instrumento pelo qual a verdade é restringida, reprimida, mesmo suprimida.
O sentido aqui é que Deus não é injusto ao infligir Sua ira, como se Ele assim o fizesse sobre pessoas que não O conhecem. Deus realmente não colhe onde não semeou. Ele não ocultou a verdade dos homens mas estes, por sua impiedade, tem reagido negativamente à verdade revelada, rejeitando-a. Assim não é por falta de divina revelação que os homens têm se esquecido de Deus, mas por sua própria negligência em reconhecê-lO como Deus. (cf. “indesculpáveis” no v. 20 up).
v. 19 - “é manifesto”, “Deus lhes manifestou” - vem confirmar o que foi dito. No que respeita a Deus, Ele tem cumprido sua parte; Ele tem revelado Sua verdade, mas o homem a tem resistido.
“entre eles”, gr. en autois - neles. A revelação se torna efetiva em vista da inteligência do homem. Qualquer revelação visa a consciência humana como Paulo adiante se refere (cf. 2:14, 15). A revelação aqui é feita fora do homem (1:20), mas a impressão é feita na consciência. Objetivo final da revelação é ganhar a mente e o coração humanos.
“é manifesto”, gr. fanéron, de onde vem teofania. Na criação é manifestado o próprio Deus: eterno poder e divindade (v.20).
v.20 - “invisíveis” - aquilo que não pode ser apreendido pelos sentidos.
“reconhecem”, gr. oximoro (de onde vem paradoxo): aquilo que é naturalmente invisível é claramente percebido ou apreendido pela mente.
“atributos invisíveis”, eterno poder e própria divindade: a suma das perfeições que caracterizam Deus.
“tais homens são por isso indisculpáveis”, Deus criou de tal forma que a criação O revela. Esse foi o propósito de Deus. Não pode ser dito que Ele não comunicou o conhecimento de Si mesmo. “Ele não está longe (Atos 17:26, 27). Resultado: Porque Deus revelou, Ele não é culpado de os homens agirem como se os homens não O conhecessem.
v. 21 - É explicativo da cláusula final do v. 20. Os homens não corresponderam, não responderam positivamente à revelaçao feita.
“não O glorificaram” - como glorificar alguém que já é glorioso? Nosso glorificar a Deus não aumenta em nada a glória que Ele já possui. O sentido é atribuir a Ele a glória que já Lhe pertence, dar a Ele em pensamento, afeição e devoção o que Lhe pertence em virtude da perfeição de Seu ser, a qual a criação revela. Permitir que esta glória se manifeste através da criatura. Aqui é estabelecida a origem da degeneração e degradação observável no paganismo, isto é, a degradação do culto a Deus significa a degradação do próprio homem. De igual forma, a glorificação rendida pelo homem a Deus, no processo de reconhecê-lO e adorá-lO, significa a própria glorificação do homem.
A mente do homem nunca é um vácuo religioso - se ocorre a ausência de verdade, ocorre sempre a presença da falsidade: “tornaram-se nulos em seus próprios raciocíneos, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.”
coração insensato -----culto pervertido
obscurecendo-----------degração moral
v. 22 - “sábios......loucos”. O temor do Senhor é o princípio da sabedoria.
v. 23 - “eles mudaram”, mas a glória de Deus não muda. O que eles fizeram foi trocar a glória verdadeira pela falsa.
Revelação divina: “glória” Reação humana: “semelhança”
“incorruptível” “corruptível”
“Criador” “criatura”
Glória, portanto, neste contexto tem a ver com imagem, semelhança. Como o adorar dá forma ao homem, é entendível a degradação moral a que ele cai.
v. 24 - “entregou” - denota a operação da ira divina, divina retribuição, julgamento divino sobre o pecado. Em 4:25 e 8:29 é o Filho que é entregue!
“Deus os entregou” - Perversão religiosa é punida pelo ato de Deus entregá-los à imoralidade. Deus abandona o pecador, entrega-o à colheita dos frutos de seu próprio pecado. Cf. a experiência de Efraim: “Está entregue aos ídolos. Dexa-o!” (Os. 4:17). Em outros termos, o pecado na esfera religiosa é punido mediante o pecado na esfera moral. Pecado como perversão religiosa é a semeadura. Pecado como degenerescência moral é a colheita. Isso é considerado punição divina. A consquência (degenração, vv. 24, 26, 27, 29-32) são o fruto de se por de lado os princípios do governo de Deus. Assim foi e assim sempre será. Hoje o mundo é um frisante evidência desse fato.
v. 25 - Causa é reiterada: o homem deixou de glorificar a Deus.
“bendito eternamente” - Deus continua a ser bendito e glorioso, embora o homem não o glorifique. Na realidade, deixando de adorar a Deus quem se prejudica é o próprio homem.
vv. 26, 27 - Pecados na esfera do sexo, justamente o elemento no homem que evoca o poder criador de Deus (lembre que a revelação é feita com base na criação). Aqui é onde ele deveria por princípio revelar a glória de Deus.
“entregou” - vv. 26, 27 são um desdobramento do v. 24.
“merecida punição” - o ser deixados aos caprichos de sua própria concupscência. Merecida porque Deus lhes enviou o Seu conhecimento e eles O despresaram.
vv. 28-31 - “entregou”, desdobramento amplo do v. 24. O quadro completo assim aparece:
v. 24: “entregou” - consequência referida quase que de passagem ---- causa amplamente referida (vv. 21-23).
vv. 26, 27: “entregou” - consequência referida menos restritamente ---- causa relembrada mais restritamente (v. 25).
vv. 29-31: “entregou” - consequência amplamente referida ---- causa referida quase que de passagem (v.28).
Os vv.29-31 encontram um paralelo em II Tim 3:1-5. Lá são pecados dos últimos dias. Mas o mundo já vivia seus últimos dias nos tempos de Paulo. Aqui são pecados de hoje como manifestação da ira. É evidente a natureza escatológica de “ira” em Rom 1:18.
Até o dia do juízo a ira se revela em consonância com a graça. No dia final em consonância com a glória!
v. 32 - “conhecendo” - A consciência humana acusa o homem de seus crimes. A intuição da punição divina é naturalmente uma realidade.
“aprovam” - o cúmulo da baixeza é aprovar o erro que é cometido. Isso significa cauterização da consciência. O homem é levado a amar o pecado ao tempo em odeia o pecador (versos29-31). Toda esta situação dos gentios leva-nos às seguintes conclusões:
(l) Os mais degradados homens não são destituídos do conhecimento de Deus e de Seus justos julgamentos.
(2) O conhecimento natural de Deus não previne os homens da indulgência com o pecado. Apenas a revelação da vontade de Deus não é suficiente para salvar o homem.
(3) O conhecimento do julgamento de Deus, de que Deus punirá o ímpio, não cria ódio pelo pecado nem disposição para o arrependimento.
SEGUNDA GRANDE DIVISÃO DA HUMANIDADE: OS JUDEUS - 2:1-3:8
Fala Paulo a gentios que não foram tão longe na degeneração, ou a judeus? Parece que é a estes últimos, pelas seguintes razões:
(l) A propensão para julgar aos gentios por perversidade moral e religiosa era peculiar dos judeus.
(2) São especialmente os judeus que participam das riquezas da bondade de Deus, por motivo do concerto.
(3) O argumento aqui é que os judeus com todos os seus privilégios não escapam ao juízo de Deus. Eles entretinham a ilusão de que Deus seria indulgente para com eles devido o concerto com Abraão (Mat 3:8, 9; Luc 3:8). Os vv. 9 e 10 afirmam expressamente que o judeu primeiro é alvo das recompensas e castigos de Deus.
(4) No v. 17 especificamente os judeus são citados.
v. 1 - Os 2 grandes pecados dos judeus: cegueira e hipocrisia.
CEGUEIRA - fracassam em ver sua própria condenação quando condenam outros.
HIPOCRISIA - julgam outros quando são tão pecadores quanto estes.
v. 2 - julgamento pelo judeu - v. 1, confrontado pelo julgamento por Deus. Julgamento ou juízo aqui é a sentença condenatória.
“segundo a verdade” - Deus julga pela verdade e não pelo status de alguém, ou pelo que aparenta ser. Para Deus não há acepção de pessoas - v. 11.
v. 3 - Questão retórica, ou argumentativa: exige uma resposta negativa.
v. 4 - “ou” - não alternativa mas retórica.
“riqueza” - abundância, magnitude de provisões feitas aos judeus através do concerto (3:2; 9:4, 5). Riqueza qualifica a bondade, tolerância, longanimidade, exemplificadas no transcurso da história de Israel - Sal 106; 136; 73. Mas o apóstolo pode ter em mente o pecado maior de Israel: matar o Filho de Deus, e como Deus ainda ama a Israel e envia-lhe a mensagem de salvação. Tolerância e longanimidade expressam a idéia de que Deus suspende a aplicação da punição e restringe a execução de Sua ira. Toda esta maravilhosa disposição de Deus é, todavia, mal interpretada.
“desprezar” - subestimar, avaliar incorretamente a bondade de Deus Isto é evidente de como o judeu respondeu ao evangelho de Deus.
“ignorando” - ou não considerando Paulo aqui não quer apenas afirmar que a bondade de Deus move o homem ao arrependimento. Ele está antes censurando o judeu pelo fato de ter deixado de aprender a grande lição de que o propósito da bondade de Deus é levar ao arrependimento (II Ped 3:9). O judeu não se arrependeu, simplesmente mal interpretar a bondade de Deus. Isto implica que o propósito da bondade de Deus é tão evidente que o fracasso em entender é totalmente inexcusável. Aqui é feito uma paralelo entre judeu e gentio:
gentio judeu
Revelação do poder e Bondade revelada
da divindade de Deus
DESPRESADA NÃO ADEQUADAMENTE
CONSIDERADA
Intuição do castigo Presume da bondade
inpendente
Esta intuição nem cria Perde a lição do propósito
.. ódio ao pecado nem induz principal da bondade: não
ao arrependimento (l:32) é levado ao arrependimento
Assim judeus e gentios estão em situação idêntica. O presunçoso judeu interpretou a bondade de Deus a ele dirigida com uma garantia de imunidade ao castigo que vem pelo critério segundo o qual outros homens serão julgados e castigados, imaginaram que teriam para si a indulgência da parte de Deus. Assim o gentio necessitava do arrependimento mas não ele, judeu. A mensagem de Cristo, porém, sempe apelou para o arrependimento “de Israel”. (Atos 5:31; 2:38; 3:19; Mat 3:2; 4:17).
v.5 - “dureza de coração”, realmente a forma como o judeu respondeu à bondade de Deus. Ele, a exemplo do gentio, colherá a “ira de Deus”, mas até com mais intensidade. “ELE ENTESOURA IRA PARA O DIA DA IRA”.
“dia da ira” - idéia do juízo final. Parece que Paulo afirma que enquanto para o gentio a ira entra em operação agora, para o judeu impenitente ela é reservada para o futuro; mas ele a acumula agora. Realmente a quem mais se confiou deste mais se exigirá. Cf. o que Jesus disse às cidades impenitentes de Seu tempo - Mat 11:20-24.
“Revelação” - no futuro, em contraste com a ira que é revelada no presente com os gentios (l:l8-32). A idéia aqui é dinâmica.
v. 6 - “a cada um” - gentios e judeus estão incluídos. Aqui temos as feições do julgamento:
(1) Universalidade - “a cada um” (cf. vv. 9, 10)
(2) Com base nas obras - “seu procedimento”
(3) A recompensa certa - “retribuirá” (cf. vv. 7-10)
vv. 7-10 - a idéia da retribuíção divina é desdobrada especificamente a cada um dos grupos, salvos e perdidos:
GRUPO |
PROCEDIMENTO |
RETRIBUIÇÃO |
SALVOS |
Perseveram em fazer o bem e procuram glória, honra e incorruptibilidade - v. 7 Praticam o bem - v. 10 |
Vida eterna - v. 7 Glória, honra e paz - v. 10 |
PERDIDOS |
Facciosos, que desobedecem a verdade e obedecem à injustiça - v. 8 Fazem o mal - v. 9 |
Ira e indignação - v. 8 Tribulação e angústia - v. 10 |
OBSERVAÇÕES |
Aqueles que procuram glória e honra (procedimento no v. 7) recebem glória e honra (retribuição no v. 10). É evidente que Paulo está falando daquilo que gentios e judeus fracassaram em atribuir a Deus (1:21; 2:23, 24), e deixa claro mais uma vez que o homem, glorificando a Deus, acaba sendo glorificado. Esse privilégio é auferido por aqueles que se submetem ao plano de Deus (5:2, 3). Nos vv. 9, 10, Paulo deixa o tratamento no plural (utilizado nos vv. 7, 8) e emprega-o no singular para poder fazer referência a “judeu e grego” (cf. 1:17), ambos os termos no singular. O argumento é exposto em termos de individualidade. Para Paulo, salvação e perdição ocorrem no nível da individualidade, e isto deve ser levado em consideração na interpretação de sua abordagem quanto ao futuro dos judeus nos caps. 9-11. |
v. 12 - havendo Paulo mencionado especificamente os dois grupos identifica-os agora em termos da lei e do pecado, com suas consequências:
gentios: os que pecaram sem lei ® sem lei perecerão
judeus: os que pecaram com lei ® mediante a lei serão julgados
Em outros termos, fica confirmado o princípio do juízo: daqueles a quem muito se confiou muito se pedirá; daqueles a quem pouco se confiou pouco se pedirá.
Temos aqui a palavra lei (gr. nómos) sendo empregada pela primeira vez em Romanos. Ela é empregada duas vezes neste verso e Paulo o faz com referência aos judeus, já que em referência aos gentios ele emprega anómos (sem lei). Em toda a epístola Paulo emprega o termo 75 vezes, com diferentes significados. Aqui indica graduação no conhecimento da vontade divina, com a idéia nas entrelinhas de que os judeus têm mais responsabilidade diante de Deus por terem maior conhecimento de Sua vontade. Paulo não está dizendo simplesmente que os gentios não possuem o conhecimento de lei alguma, pois isso ele nega no v. 14, e já no cap. 1 ele deixa claro que a revelação divina para eles é uma realidade. Todavia, para os judeus, além da revelação natural, que também foi estendida aos gentios, Deus outorgou a revelação sobrenatural.
O que Paulo declara no v. 12 faz parte de sua argumentação de que os judeus também são indesculpáveis diante de Deus; embora nutram a ilusão de que Deus será complascente com eles, Paulo afirma a bem da verdade que eles terão mais por responder diante de Deus do que os gentios.
v. 13 - O apóstolo agora explica em poucas palavras porque o judeu não deve se iludir com qualquer idéia de indulgência da parte de Deus para com ele. O Deus que “não faz acepção de pessoas” (v. 11), tem apenas uma norma através da qual aferir a situação do homem, para que este seja justificado ou não: harmonia com sua lei, e essa harmonia não ocorre apenas quando se ouve a lei, por mais prazeirosamente que se faça isso, mas quando se pratica a lei. Ouvir a lei, todavia, é o máximo que o legalista judeu tem feito, já que ele não a tem praticado (vv. 21-24).
Este verso tem sido citado como prova de que Paulo inclui em sua teologia a prática da lei pelo pecador como ingrediente no ato divino da justificação. Isto, porém, conflita com o que claramente ele diz em outros textos como 3:20; Gál 2:21; 3:10, 11; Efés. 2:8; etc. Temos que lembrar que o apóstolo ainda não começou a explicar a justificação pela fé. Tudo o que ele diz neste verso é que a justificação ocorre quando ocorre a harmonia com a lei. O que ele quer deixar claro é que os judeus não podem se considerar justos diante de Deus porque eles não têm se colocado em harmonia com Sua lei. A grande questão “como alguém alcança harmonia com a lei?” será respondida a partir de 3:21, e alcançará sua culminância em 8:3, 4 (ver também 9:30-32).
Qual o sentido de lei em 2:13? A vontade de Deus, expressa não apenas nos dez mandamentos, salvo se os tomamos como a expressão escrita da lei de Deus como um todo, como a máxima expressão do caráter de Deus, isto é, a lei como expressão dos princípios que identificam o Seu caráter, a lei tomada no seu sentido amplo, essencialmente espiritual. Harmonia com Deus, com os princípios de Seu caráter redunda em justificação. Na simples expressão “ouvir a lei”, todavia, pode Paulo estar se referindo aos escritos sagrados cuja leitura era feita em todas as sinagogas, e que propiciava aos judeus o prazer de “ouvir a lei”.
v. 14 - “gentios que não tem lei” - aqueles que não contam com o privilégio de terem recebido a revelação sobrenatural, a qual traz uma exposição mais definida dos reclamos de Deus, “procedem por natureza de conformidade com a lei”, isto é, atendem, pelo menos parcialmente, aos reclamos divinos naturalmente impressos na consciência humana, e comprovados pela intuição que as pessoas, mesmo sem terem conhecimento da revelação escrita, têm do que é certo e do que é errado. É fácil concluir por estas palavras que Paulo adverte os judeus de que entre os gentios não existe apenas degenerados, mas pessoas sinceras que andam segundo a pouca luz que têm, e nesse caso estão em melhor condição que muitos judeus que se limitam apenas a ouvir o que a lei diz.
“servem eles de lei para si mesmos” - essa intuição atuando na consciência lhes dita o que devem fazer e o que não devem.
v. 15 - “a norma da lei gravada em seus corações” - determinados princípios da lei de Deus acham-se indelevelmente gravados na consciência humana. O homem por natureza é um ser religioso dotado do senso moral.
“mutuamente acusando-os ou defendendo-os” - dotado por natureza da intuição do certo e do errado, o homem sente quando agiu corretamente ou não, nos pontos morais e éticos a que a consciência é sensível. Paulo não declara isto pela primeira vez, já que, ao descrever a degeneração pagã, afirmara que os praticantes de atos reprováveis sentiam que eram passíveis de punição (1:32).
v. 16 - Ao falar de acusação e defesa Paulo está tocando no tema do juízo que explicitamente é referido agora.
“Deus, por meio de Jesus Cristo, julgar” - para Paulo o juízo divino é executado por Jesus.
“os segredos dos homens” - o juízo divino vasculhará o interior do homem, distinguindo-se do juízo humano que é levado muito pela aparência. Assim, a lei que atua na consciência, é condizente com o juízo.
“de conformidade com o meu evangelho” - o apóstolo não está dizendo que as pessoas serão julgadas de acordo com o evangelho que ele prega, isto é, sendo o evangelho a norma do juízo, mas que o juízo é um dos temas do evangelho que ele prega.
vv. 17-23 - Nesta seção Paulo desdobra ainda mais o que vem falando. Especialmente devemos ter em vista o v. 13, onde o apóstolo estabelece dois posicionamentos para com a lei: meramente ouvi-la (o que os judeus prazeirosamente faziam) e praticá-la (o que os judeus com o seu legalismo não conseguiam fazer). Esses dois posicionamentos são desenvolvidos com base no comportamento do judeu, um positivo e outro negativo. O comportamento positivo se liga ao posionamento de ouvir a lei. O comportamento negativo se liga ao posicionamento de não praticar a lei:
OUVIR A LEI |
NÃO PRATICAR A LEI |
01. Tens por sobrenome judeu (v. 17) |
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02. Repousas na lei (v. 17) |
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03. Te glorias em Deus (v. 17) |
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04. Conheces a Sua vontade (v. 18) |
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05. Aprovas as coisas excelentes (v. 18) |
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06. És instruído na lei (v. 18) |
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07. Crês que és guia de cegos, e luz aos que se encontram nas trevas (v. 19) |
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08. Instrutor de ignorantes (v. 19) |
Não te ensinas a ti mesmo (v. 21) |
09. Mestre de crianças (v. 20) |
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10. Tens na lei a forma de sabedoria e verdade (v. 20) |
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11. Pregas que não se deve furtar (v. 21) |
Furtas (v. 21) |
12. Dizes que não se deve cometer adultério (v. 22) |
Cometes adultério (v. 22) |
13. Abominas os ídolos (v. 22) |
Roubas os templos (v. 22) |
14. Te glorias na lei (v. 23) |
Desonras a Deus pela transgressão da lei (v. 23) |
Paulo é mais prolixo ao abordar o conceito positivo que o judeu tinha de si mesmo. Parece que nesse ponto ele solta as rédeas para que finalmente o judeu pondere como ele agiu em vista de tantos privilégios.
Com estas declarações ele expõe devidamente o caráter espiritual da lei. O sermão da montanha é aqui posivelmente evocado diante do que é dito no v. 22. O legalismo realmente não coloca o homem em harmonia com a lei, porque esta não se limita apenas a um código legal, com mandamentos que tocam meramente o seu exterior. Ela tem a ver antes de tudo com o que o homem é, com o seu caráter, e então com o que ele faz ou deixa de fazer. E assim é que, não vivendo o princípio da lei, os judeus eram, em vários apectos, faltosos mesmo com a letra da lei, embora nela se substanciassem.
v. 17- “tens por sobrenome judeu”, em contraste com “judeu é aquele que o é interiormente” do v. 29. A mera profissão não é suficiente; ter apenas o nome é muito pouco.
“Repousas na lei”. Toma a lei como fator de segurança. O legalista, todavia, pode acordar tarde para o fato de que se apoiar na lei como meio de salvação é como se apoiar na ponta de uma faca.
“te glorias em Deus”, em conexão com “te glorias na lei” do v. 23. Uma coisa não é necessariamente equivalente à outra. Devemos entender que possivelmente o judeu se gloriava em Deus através de se gloriar na lei. O judeu se orgulhava de ser conhecedor e praticante do culto genuíno. Seu zelo pela lei poderia ser encarada como sua resposta à revelação vinda de Deus.
v. 18 - “conheces a Sua vontade” - o reconhecimento da parte do judeu de que ele conhecia a vontade de Deus deveria despertar em Sua consciência um maior senso de responsabilidade por uma conduta condizente com essa vontade.
“instruído na lei” - a instrução na Torah começava cedo para o judeu. A frequência semanal às sinagogas consolidava a instrução recebida desde o início.
v. 19 - “guia de cegos, luz dos que se encontram nas trevas”. Os judeus consideravam-se a luz do mundo. Mas observe o que Jesus disse em Mat 15:14. Os gentios em geral eram tidos como ignorantes de Deus e da verdade.
v. 20 - “instrutor de ignorantes, mestre de crianças” - Ignorantes e crianças possivelmente são termos que qualificariam, na mentalidade judaica, gentios que se dispunham ao aprendizado da torah. É possível, todavia, que o termo “criança” esteja sendo empregado com sentido literal. O menino judeu começava oficialmente o aprendizado da torah com 5 anos, tempo em que começava a chamada idade escolar.
“tendo na lei a forma da sabedoria e da verdade”. A palavra “forma”, gr. morphosis, indica algo sem subsância, apenas um esboço, ou uma aparência. Possivelmente o apóstolo retrate a maneira como os judeus consideravam a lei como fonte da verdade; pegavam-na quase que apenas na letra. Não iam suficientemente a fundo na busca do verdadeiro conhecimento. O resultado era a prática de uma religião no geral fundamentada no formalismo.
v. 21 - “furtas?”, possível referência ao comportamento desonesto em negócios e transações comerciais. Po exemplo, a corrupção no templo era uma realidade reconhecida por muitos.
v. 22 - “adulteras?” - que os judeus eram praticantes de crassa imoralidade, praticamente idêntica a dos pagãos, é deduzido de algumas referências nos escritos rabínicos, e outras fontes. Ver o SDABC, vol. 6, pág. 484. É possível também que Paulo tenha em mente o que Jesus havia ensinado a respeito (ver Mat. 5:27, 28).
“roubas os templos?” - Paulo possivelmente salienta a inconsistência dos judeus em abominar os ídolos ao tempo em que, segundo os próprios postulados da religião judaica, contaminavam-se com eles ao saquearem os templos, atitude que era considerada um sacrilégio pelos pagãos. A torah proibia esse ato (Deut 7:25), que parece seria comum entre judeus no tempo do Novo Testamento (ver Atos 19:37). Pode o apóstolo igualmente estar pensando naquilo que acontecia no templo de Jerusalém.
v. 23 - “desonras a Deus”. Já se vê que no conceito de Paulo a transgressão da lei é desonra para Deus.
v. 24 - “o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa”, citação de Isa 52:6, cujo contexto é o cativeiro assírio ou babilônico, ou ambos. Levando Israel cativo, os gentios alardearam a superioridade de seus deuses, o que representou desonra para o nome de Deus. O cativeiro se deveu à apostasia do povo de Deus, o que o tornou responsável por essa desonra. O quadro no tempo de Paulo não era muito diferente, e o apóstolo se vale desse fato para afirmar que os judeus seguiram pelo mesmo caminho dos gentíos: não glorificaram a Deus (ver 1:21).
vv. 25-29. Uma vez estabelecido que os judeus igualmente erraram o alvo, Paulo passa a mostrar que a mera circuncisão e descendência étnica de Abraão não têm o menor valor. Com isto ele ataca o último reduto de defesa do judaismo: “somos circuncidados e filhos de Abraão”. O enfoque sobre a verdadeira filiação abraâmica será feito com mais precisão no cap. 4.
vv. 25, 26 - No raciocíneo de Paulo circuncisão - prática da lei = incircuncisão, e incircuncisão + prática da lei = circuncisão. Gentíos que viviam de acordo com a pouca luz que possuíam (cf. vv. 14, 15), seriam mais apreciados por Deus que aqueles agraciados com maior luz e que não viviam a altura desse privilégio. A circuncisão, avaliada em tão alta estima pelos judeus, só seria válida se consubstanciada com uma vida de obediência a Deus. Com isto Paulo contraria o pensamento rabínico de que a circunscisão vinha antes de qualquer outro ato de obediência.
v. 27 - “te julgará a tí” - Paulo consegue agora inverter os papéis. De início ele lembra que o judeu era ágil em julgar e condenar o gentio (vv.1, 3). Agora o gentio é colocado como fator de juízo contra o judeu. Ao julgar os judeus o grande Juiz apontará para gentios que viveram segundo a pouca luz que tinham, como prova de que são indesculpáveis pela sua infidelidade.
v. 28 - o mero cumprimento de uma religião formal não coloca o judeu como um verdadeiro judeu.
v. 29 - Deus considera um verdadeiro judeu aquele que vive a verdade desde o seu íntimo, da mesma forma que a verdadeira circuncisão é aquela que se processa no coração. O apelo divino pela verdadeira circuncisão vem desde as páginas do Velho Testamento (Deut 10:16; Jer 4:4). Nas entrelinhas está o fato de que pessoas cincuncidadas que rejeitam o evangelho se revelam incircuncisas de coração (Atos 7:51).
v. 1 - “Qual é, pois, a vantagem do judeu?” - A esta altura poderia parecer que os judeus não ofereceriam nada além do que poderia o gentio oferecer. Paulo corrige este raciocíneo, mostrando que a vantagem dos judeus é uma realidade, tendo em vista os privilégios de que foram receptores. Isto se contrasta com o v. 9 onde o apóstolo pergunta: “temos nós [judeus] qualquer vantagem?”, e responde: “não, de forma nenhuma”. Aqui a referência é à condição dos judeus: tão perdidos quanto os gentios, pois a exemplo destes, os judeus não corresponderam adequadamente ao que Deus fez por eles.
v. 2 - “muita”. Todavia Paulo menciona apenas um privilégio: a recepção dos oráculos de Deus. Em 9:4, 5 ele amplia a lista.
“Oráculos”, a revelaçao especial, sobrenatural e direta de Deus. Paulo pensa no Velho Testamento em sua inteireza. Os oráculos como Escritura foram confiados aos judeus. Assim eles são os originais depositários do Velho Testamento. Os oráculos divinos se consubstanciam no “assim diz o Senhor” e foram transmitidos às gerações seguintes na forma escrita. Portanto, Escritura, oráculos divinos e o “assim diz o Senhor” se equivalem. A palavra escrita é tão divina quanto a oral dada diretamente por Deus ao profeta. Este foi um grande privilégio concedido aos judeus porque acima de tudo nos oráculos de Deus está contido o evangelho na forma de promessa (1:2). Com efeito, Jesus afirmou: “Examinais as Escrituras [fazia referência ao Velho Testamento] porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de Mim.” (João 5:39).
v. 3 - “não creram”. Alusão em especial à rejeição de Jesus por parte dos judeus, o Mesmo que houvera sido anunciado no Velho Testamento.
v. 4 - “todo homem”. Note a progressão de “alguns deles” (v. 3) para “todo homem” (v. 4). Ainda que todo homem seja mentiroso, a verdade de Deus permanece inviolada.
“vencer quando fores julgado” - Paulo cita o Sal 51:4 numa forma mais condizente com a LXX, a qual expressa o texto hebraico em termos de uma teodicéia: Deus sendo julgado e prevalecendo. No final do grande conflito, Deus estará vindicado em seu trato com o pecado. Deus será tido como verdadeiro e justo.
vv. 5-8 - “traz a lume”. O pecado coloca em realce a justiça divina. Deus é vindicado no julgamento que pronuncia contra ele. O argumento paulino neste ponto poderia ser facilmente distorcido, coisa que realmente estava acontecendo. Se o pecado acaba resultando na vindicação de Deus deveria ser considerado um benefício e não um mal. Esta era uma das acusações que os adversários do apóstolo impetravam contra ele (ver o v. 8), uma séria acusação. Eles assumiam que Paulo, com sua doutrina da justificação pela fé, estava promovendo o pecado. Mas esta acusação não poderia ser senão o fruto de uma atitude malévola e preconceituosa, frontalmente rechassada por ele no cap. 6. Na verdade, a justificação pela fé é o único meio de o pecado ser vencido e banido, e a lei de Deus ser confirmada (v. 31). Aqui, entretanto, ele ainda não estava expondo o seu ensino, razão porque se limita a extravasar a sua santa indignação: “a condenação destes é justa.”
É possível observar nas entrelinhas o intento de Paulo de esclarecer as dúvidas quanto a ele e sua doutrina, dúvidas que os adversários haviam semeado e que já brotavam na mente dos crentes romanos de quem o apóstolo esperava o apoio (ver pp. 5, 6 quanto ao propósito de Paulo ao escrever aos Romanos).
CONCLUSÃO: GENTIOS E JUDEUS ESTÃO IGUALMENTE PERDIDOS - vv. 9-20
v. 9 - “nenhuma vantagem”. Não há contradição com o v. 1, pois agora o assunto a condição dos judeus: eles estão debaixo da condenação tanto quanto os gentios. A ideía do “ouvir a lei” e o “praticar a lei” de 2:13 parece ecoar em nossos ouvidos aqui: quanto ao ouvir os judeus tinham muita vantagem; quanto ao praticar, nenhuma vantagem.
“temos demonstrado”, lit. “temos acusado”. Paulo estava sendo acusado; ele, também, tinha o que acusar, e sua acusação estava devidamente fundamentada nos fatos.
“debaixo do pecado”, não equivalente a “debaixo da lei” de 6:14, pois a lei não é pecado (7:7). Estar debaixo do pecado define uma situação: escravidão, estar sob o tacão, o senhorio do pecado; estar debaixo da lei define uma atitude: tomar a lei como meio de salvação, subordinar-se a ela para ser salvo. “Nascido sob a lei” de Gál 4:4 denota a atitude voluntária de Cristo de se submeter aos reclamos que nós deveríamos cumprir e não o fizemos. Cristo em verdade tomou o nosso lugar e manifestou-se como a nossa segunda chance, jamais disperdiçada, como ocorreu com a primeira em Adão. Mas Cristo jamais esteve “debaixo do pecado”. Ele “não conheceu pecado” (II Cor 5:21).
“todos” - seja qual for o aspecto em que o homem é considerado,o veredito das Escrituras, citadas a seguir, é um só: UNIVERSAL E TOTAL DEPRAVAÇÃO.
v. 10 - “não há justo”. Sumário inicial do que é desdobrado a seguir. A ausência da justiça significa a presença do pecado. A citação é extraída dos Salmos 14 e 53, mais condizente com a LXX.
v.11 - “não há quem entenda, não há quem busque a Deus”. De volta o pecado básico. Nem gentios (cap. 1), nem judeus (cap. 2) relacionaram-se corretamente com Deus. O problema situa-se antes de tudo na mente (“não há quem entenda”) e externaliza-se na maneira como ocorre o relacionamento com Deus (“não há quem busque a Deus”). Atitude mental inconveniente para com Deus leva a uma “disposição mental reprovável” para com o semelhante (1:28).
v. 12 - “extraviaram” - idéia de apostasia (gr. ekklíno, desviar, inclinar para fora).
“inúteis”, “corruptos” no texto hebraico de Sal 14:3 e 53:3. O emprego, na LXX, do aoristo de achreióo, tornar-se inútil, é providencial para a argumentação apostólica da inutilidade humana em providenciar sua própria salvação. Mas a idéia de geral corrupção está presente. Da mesma forma que um morto pode fazer alguma coisa por si, pode o pecador atuar para a própria salvação.
“todos” - fazer o bém: ninguém; fazer o mal: nenhuma excessão.
vv. 13-17. Pecados consequentes especificados. Os órgãos do corpo são postos a serviço do pecado, o que indica total degenerscência.
“Garganta... língua... lábios... boca” - Depravação é evidenciada na qualidade de linguagem. A boca fala do que está cheio o coração. A vil linguagem é a expressão da degenerescência.
“pés” - o caminho da injustiça é palmilhado;.
“destruição e miséria” - o pecado e suas implicações; a forma como o pecador se relaciona com o seu semelhante (ver 1:29-31).
“desconhecem o caminho da paz” - não estão em paz com Deus, que só a justificação pela fé pode gerar (5:1), não podem estar em paz com os semelhantes.
v. 18 - “não há temor de Deus diante de seus olhos” - o pecado básico de volta. Os olhos são os órgãos da visão. Falta aos homens uma adequada visão de Deus, por culpa deles e não dEste, como Paulo já o demonstrara.
O temor de Deus é apropriadamente expresso como diante dos olhos, porque o temor de Deus significa que Ele está constantemente no centro do pensamento, e a vida é caracterizada pela consciência, plenamente persuasiva, de dependência dEle e responsabilidade para com Ele. A ausência deste temor significa que Deus é excluído não somente do centro do pensamento, mas do horizonte completo de nossas considerações. Deus não está em nossos pensamentos. Figurativamente Ele não está diante de nossos olhos.
v. 19 - “tudo o que a lei diz”. Feita anteriormente a citação de dois salmos, devemos entender que lei aqui significa todo o Velho Testamento, e talvez mesmo a revelação natural. Qualquer parte das Escrituras tem força e relevância que pertence à lei, o que também pode ser dito daquilo que Deus revelou na natureza. A lei fala. As Escrituras não são uma palavra morta, mas uma linguagem viva.
“diz” - verbo no presente do indicativo, “continua dizendo”. As Escrituras não eram vivas apenas ao serem expressas e escritas. Elas continuavam vivas no tempo de Paulo. Continuam vivas até hoje. Tudo isto pode ser dito também da revelação natural.
“estão na lei”, não equivalente ainda a “debaixo da lei” de 6:14. Denota uma condição e não uma atitude. Significa a esfera da lei, a esfera na qual a lei é aplicável como demanda e julgamento.
Quantos estão na lei? quantos são embraçados pela esfera da lei? Todos, pois na continuidade é dito: “toda a boca se cale”. Os gentios têm tido também uma revelação da parte de Deus, e os princípios da lei estão gravados em sua consciência (1:19, 20; 2:14, 15). Logo eles não estão fora da esfera do julgamento pronunciado por Deus.
v. 20 - Aqui a causa porque todo o mundo é culpável diante de Deus (v. 19up).
“ninguém será justificado... por obras da lei”. Lei aqui é entendido em seu sentido amplo, espiritual e profundo, pois por ela vem o pleno conhecimento do pecado (gr. epignosis, conhecimento pleno, distinta percepção).
“diante dEle” - idéia de estar diante do tribunal de Deus.
“será” - o emprego do futuro é apenas argumentativo, e significa o presente. Esse tipo de futuro é usado para expressar a universalidade e certeza da proposição.
V. 21 - “agora” - um contraste de tempo e de circunstância. Na perspectiva do tempo o agora de Deus é a encarnação com destaque para o Calvário (Gál 4:4). Antes do agora, tudo o que tínhamos era a promessa da redenção vindoura. Agora ela é uma realidade. No aspecto circunstancial, o agora de Deus é visto com a caducidade do recurso salvífico do homem. Agora que ficou devidamente esclarecido que todos estão perdidos, e nada podem fazer, o recurso de Deus é introduzido.
“sem lei” - a justificação pela fé não conta com nenhuma contribuição (preparatória, acessória ou subsidiária) que seja dada por obras da lei. “Sem lei” significa sem o mérito humano, sem Deus levar em consideraçãoo que o homem fez de bem, ou mesmo de mal. Ninguém é tão bom que possa dispensar o plano de Deus. Ninguém é tão mau que não seja digno dele.
“testemunhada pela lei e pelos profetas” - isto é o Pentateuco e o restante do Velho Testamento. Há uma continuidade natural entre as duas dispensações e os dois testamentos. A fórmula de salvação é uma para ambos. Aqui um claro exemplo de como Paulo usa o termo lei com sentidos diferentes. Volte para o comentário de 1:2 e note como realmente todo o Velho Testamento testemunha acerca do plano de Deus.
v. 22 - um eco do v. 17:
1:17 3:22
Justiça de Deus Justiça de Deus
se revela se manifestou (v. 21)
no evangelho em Jesus Cristo
de fé em fé mediante a fé
“fé em Jesus Cristo” - Jesus é o objeto, não o sujeito, da fé. Não a fé que Jesus possuiu, exibiu e exemplificou (sentido esse que estaria incluído em Apoc 14:12); mas fé em Jesus. Não se trata de uma fé comum em Deus; não é matéria de simplesmente dizer “eu creio em Deus, que Ele existe, etc.”. Mas fé direcionada a Cristo, ao que Ele operou históricamente: redenção (livramento), propiciação (reconciliação), e vindicação da justiça. O nome completo, Jesus Cristo, aponta-O como Salvador, Redentor e Senhor. É fé nEle como tal que nos relaciona adequadamente com a justiça de Deus, e nos justifica.
“para todos os que creem” - não uma mera redundância, tendo em vista “fé em Jesus Cristo” expresso imediatamente antes. “Fé em Jesus Cristo” é o método de se apropriar da salvação. “Todo o que crê” aponta para a universalidade da salvação (salvação a disposição de todos). Confirma o fato de que todos estão perdidos e são carentes do plano de Deus. Por isso, Paulo ajunta logo a afirmação: “porque não há distinção.” Mas note que a salvação é auferida individualmente; daí a necessidade de uma resposta pessoal do homem: crer.
v. 23 - “todos pecaram”, completa o pensamento da parte final do v. 22, “porque não há distinção”, e confirma a declaração de universalidade da salvação:
(l) Todos são pecadores
(2) O Evangelho é o poder de Deus para todo o que crê
(3) Assim qualquer um crendo é salvo
Nossa situação desesperadora é o nosso mérito. Eu mereço porque eu careço.
“pecaram” - gr. hamartáno, errar o alvo; no aoristo indica o pecado de cada homem como um fato consumado. Não deve ser aplicado restritamente ao pecado de Adão como razão de todos se tornarem pecadores (5:12). Temos aqui uma inferência lógica do que o apóstolo expôs antes: gentios e judeus indistintamente pecaram, erraram o alvo (vv. 9, 10).
“carecem”, estão destituídos, têm falta. Aponta para uma situação e não para uma ação. Mas a situação se origina da falta de uma ação correta, ou da presença de uma ação imprópria. O verbo grego é husteréo (cf. Heb 4:1; 12:15), não ter alcançado, estar aquém, atrás, não conseguir, falhar em atingir, ter falta de alguma coisa por não tê-la conseguido, e combina com a idéia de hamartáno, errar o alvo.
“glória”, qual o sentido aqui? Não sinônimo de graça, no sentido que somos pecadores e necessitamos da graça, caso contrário o verbo seria krézo, precisar, carecer (cf. l6:2; I Cor 12:21), e não husteréo. Existem quatro hipósteses:
(l) Os homens falharam em render glória a Deus. Isto Paulo demonstrou ter sido o caso tanto de gentios como de judeus (1:21; 2:23, 24).
(2) Fracasso em receber a glória, honra ou aprovação da parte de Deus, como em João 5:44. Paulo talvez se referiu a esta glória em 2:7, 10. Se este é o caso, deveríamos ler: “todos pecaram e carecem da aprovação de Deus”.
(3) Fracassar em alcançar a glória futura, na segunda vinda de Jesus. Paulo fala desta glória em 5:2, 8:18 e 21.
(4) Estar em desarmonia com a imagem de Deus, não refletir a glória do Seu caráter, pelo estado de pecaminosidade em que o homem se encontra. Em I Cor 11:7 imagem equivale a glória, e em 1:23 glória se encontra em antítese com semelhança, antítese porque aquela se refere a Deus e esta à criatura, mas estão relacionadas.
Se (1) fosse pretendido por Paulo seria mais próprio uma construção assim: “Todos pecaram e fracassaram em dar glória a Deus” (cf. “dando glória a Deus”, em 4:20). Se (2) fosse pretendido, a melhor construção seria dókses parà tou Theou, glória que vem de Deus, e não dókses tou Theou, glória de Deus. Se (3) fosse pretendido, o verbo seria usado no futuro, e não no presente, indicando uma situação atual. É mais preferível a quarta hipótese, porque para Paulo, inegavelmente, o Evangelho restaura no homem o que o pecado lhe furtou, entre outras coisas, a imagem de Deus. O Evangelho supre no homem o que está lhe faltando por causa do pecado (ver II Cor 3:18). Estamos aquém daquela perfeição original, a qual é o reflexo da divina perfeição, a glória de Deus.
v. 24 - Para melhor estrutura das frases devemos considerar vv. 22up e 23 parentéticos, e ligar “sendo justificados gratuitamente por sua graça” com “justiça de Deus para todos os que creem” (v. 22). “Gratuitamente” combina com “sem” e “mediante a fé” ou “todos os que creem.” Justificação é um dom de Deus. Vv. 22b e 23 estão em significativa relação com o que vem antes e o que vem depois, e o v. 24 reassume o tema de 21, 22a, e o expande.
“gratuitamente” e “por Sua graça” são sinônimos e servem de ênfase para o caráter de imerecimento do dom de Deus, e confirma solenemente a verdade do v. 20. Deus não é constrangido a justificar-nos por algum ato meritório de nossa parte. Nossa necessidade exclusiva de Deus é na realidade o nosso mérito. Nada em nós ou praticado por nós nos pode recomendar a Deus. O dom é exclusividade de Deus, iniciativa de Deus e total realização de Deus.
“redenção”, palavra-chave no tema da justificação pela fé. Justificação de graça para o homem custou um preço para Deus. Justificação é pela graça, isto é, o homem não entra com nenhum mérito. Justificação se efetiva através de redenção, isto é, o custo é pago totalmente por Deus. O que Deus pagou, ou fez, realça a salvação como dom gratuito de Deus para o homem. Cristo pagou o preço.
Significado básico de redenção: resgate pelo pagamento de um preço. A idéia no evangelho é de resgate substitutivo: Mat 20:28; Mar 10:45. O preço = dar Sua vida (Tito 2:14), ou derramar Seu sangue (Efés 1:7; cf. I Ped l:18.
Termos gregos expressando redenção ou redimir: lýtron, antílytron, lýtrosis, lytrousthai, apolýtrosis, ecsagorázo, agorázo, peripoiesthai (peripoiéo). Rom 3:24 emprega apolýtrosis. A forma lýtron, e cognatas, tem a mesma raiz do verbo lyo, soltar, liberar, desatar, desimpedir, pagar quitação, libertar. Assim, lýtron é preço pago, resgate, e lýtrosis é redenção, liberação, livramento.
A idéia é de um livramento através de um preço pago. Etimologicamente o sentido é de um preço pago para a libertação de escravos, ou prisioneiros de guerra. A quem foi pago o preço? A Bíblia silencia. A Deus? Ele mesmo providenciou o pagamento. A satanás? Ele é apenas um usurpador. Por inferência podemos supor que foi à justiça de Deus.
É dito que a “redenção” está em Cristo: ela não é vista somente naquilo que Cristo fez, mas nEle mesmo. Ele é a corporificação da redenção.
v.25 - “propiciação”, outro termo chave na doutrina da justificação pela fé. Gr. hilastérion, propiciação, expiação. Refere-se à provisão feita por Deus para a nossa justificação. Enquanto redenção faz face à nossa escravidão no pecado e é a provisão da graça para nos libertar, propiciação faz face à nossa sujeição à ira de Deus e é a provisão da graça pela qual podemos nos livrar desta ira. Paulo tem demonstrado que todos estão sujeitos ao pecado e à ira de Deus. Mas a justiça salvífica tem sido manifestada trazendo a solução para estas duas situações. Hilastérion, algo investido com poder propiciante, apaziguante, aparece aqui e em Heb 9:5 onde é vertido como propiciatório (a cobertura da arca do concerto no santuário mosaico). I João 2:2 e 4:10 empregam a variante hilasmós, vertida como expiação. A forma verbal hilaskomai, apaziguar, aparece em Heb 2:17, e é vertida como fazer propiciação.
O sentido é de apaziguamento e aqui o termo está ligado à idéia da ira de Deus em 1:17 e 2:5. Quando a palavra é relacionada com Deus a melhor tradução é propiciação; quando é relacionada com o pecado a melhor tradução é expiação, como em I João 2:2; 4:10 e Heb 2:17.
PROPICIAÇÃO ® IRA DE DEUS EXPIAÇÃO ® CULPA DO PECADO
Ambos os sentidos são válidos. O ponto é que Deus é apaziguado em Sua ira precisamento porque o pecado é expiado. Não devemos, todavia, confundir a ira de Deus com o emocionalismo que os adoradores pagãos atribuiam aos seus deuses, ira que poderia ser aplacada por algum tipo de oferta providenciada pelo adorador. A indignação de Deus contra o pecado tem a ver com a santidade de Seu caráter. E não é esperado que o pecador faça alguma coisa para aplacar a ira de Deus. A iniciativa, e o ato de propiciar ou aplacar, é do próprio Deus -- “Deus propôs”. Isto significa que o mesmo Deus que odeia o pecado com todas fibras do Seu ser, ama o pecador de tal forma que deu Seu único Filho para expiar os pecados do mundo todo (João 3:16; I João 2:2). A cruz é a consequência e não a causa do amor de Deus.
Outros textos que mostram que é o próprio Deus que providencia a reconciliação: Rom 5:8, 10; II Cor 5:18, 19.
O resultado da redenção é libertação, que abre caminho para a santificação, discutida a partir do cap. 6 (ver também Efés 5:25, 26; Tito 2:13, 14).
O resultado da propiciação é paz com Deus, que abre caminho para a justificação e seus resultados, discutidos no cap 5:1-11. Ver em Ladd o sentido de redenção e propiciação em Teologia do Novo Testamento, págs. 400-407.
“Seu sangue”, tanto o preço do resgate como o meio do “apaziguamento” de Deus.
“mediante a fé” - ela sempre é o meio pelo qual nos apropriamos da provisão.
Com isto se completam os 3 elementos indispensáveis no processo da justificação, cada um ligado a uma específica Pessoa da Divindade:
O PAI - a graça O FILHO - o sangue O ESPÍRITO SANTO - a fé
“manifestar Sua justiça” - novamente o tema da revelação dinâmica da salvação. Isto é uma reiteração do ato de Deus “propor” já que no grego este verbo exibe a idéia de um ato público. A morte de Cristo foi pública e isto revela a justiça de Deus. Mas o sentido de justiça salvífica neste verso e no seguinte confunde-se com o sentido de justiça como atributo do caráter de Deus. Isto é evidenciado pela afirmação de ter Deus em épocas passadas tolerado o pecado e o deixado impune (cf. Atos 14:16; 17:30).
Paulo quer dizer que no passado Deus sustou Sua ira, isto é, não visitou os homens em seus pecados. Isto não deve ser confundido com perdão ou remissão. Significa que Deus não executou sobre o homem a completa medida do Seu desprazer, mas exerceu tolerância pelos pecados do homem. Isto tornou necessário que Deus exibisse agora na propiciação efetuada por Cristo, a Sua justiça, pois a tolerância exercida no passado poderia levar o homem a pensar que Deus estava abrindo mão de Sua própria justiça. Havia o perigo de a inviolabilidade da justiça de Deus ser obscurecida na mentalidade do homem. A tolerância de Deus corria o risco de ser mal interpretada, isto é, de ser tida como indiferença às reiterações da justiça, e a suspensão da aplicação da ira ser considerada como uma anulação do julgamento. Era necessário que ficasse bem claro que Deus não estava sendo indulgente para com o pecado.
Portanto agora, ao derramar Cristo o Seu sangue como propiciação, Deus dá uma demonstração pública, aberta, de que o Seu desprazer pelo pecado continua inviolado e em pé, e que Sua ira só não se abateu e se abate sobre o pecador porque ela se abateu sobre um Substituto. Assim para Deus ao mesmo tempo justificar o pecador e não abrir mão de Sua justiça, Ele propõe o derramamento do sangue de Cristo (ou seja, o Seu sacrifício) como o meio de dar plena satisfação à Sua justiça. Isto faz também que a justiça de Deus seja vindicada, já que antes correu o risco de ser mal interpretada.
Assim a tolerância de Deus e Seu passar por alto os pecados anteriormente cometidos exigiram dEle a demonstração de Sua justiça inerente. Isto Ele fez entregando Seu Filho para ser morto na cruz. A cruz , portanto, evidencia tanto Seu amor pelo pecador, como Seu ódio pelo pecado. Ali Sua ira é apaziguada, porque Sua justiça é satisfeita. Esta demonstração de Sua justiça revela-nos finalmente que a justificação do pecador demanda nada menos que a propiciação feita no sangue de Jesus.
v. 26 - “justo e justificador” - todo esse processo fundamentado no sacrifício da cruz faculta a Deus justificar o pecador sem deixar de condenar o pecado, e sem abrir mão de Sua justiça. Ao tempo em que Ele justifica o pecador Ele continua sendo justo.
vv. 27-31 - Conclusões paulinas do exposto
São estabelecidos os resultados a serem obtidos do evangelho da graça delineado nos vv. 21-26:
(1) Jactância é excluída (v. 27); o orgulho religioso, o triunfalismo, o exclusivismo, e outros ismos ligados ao legalismo, são eliminados.
“lei” - novamente dois sentidos:
lei das obras - legalismo (o sistema humano de salvação)
lei da fé - salvação pela graça (o sistema divino de salvação)
Vejamos, portanto, que a palavra lei chega a ser empregada com o sentido de salvação pela graça, em Paulo. Todavia a fé tem sido revelada como o meio, ou método, e não a fonte de salvação. Ninguém pode jactanciar-se da fé que possui. A fé um dom de Deus, e não repousa no mérito humano, nem na capacidade humana.
(2) Justificação é pela fé (v. 28); isto é tanto causa como conclusão do que é dito no v. 27.
(3) Salvação é tanto para judeus como para gentios (vv. 29, 30); Deus é um só, e Seu método é apenas um. “Justificará”, outra vez futuro argumentativo; realça a certeza de que Deus o fará. O sentido é o tempo presente.
(4) Pelo plano divino de salvação a lei é confirmada (v.31); “anulamos, pois, a lei, pela fé? Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei.” Duas formas de interpretar este texto:
l. A lei significa todo o Velho Testamento. Justificação pela fé foi anunciada antes da cruz, na forma de promessa. O cap. 4 comprovará esse fato mais uma vez, já que a citação de Habacuque aparece em 1:17. Nesse caso o v. 31 abre caminho para a tese do cap. 4, o que significaria que esse verso pertence ao argumento do cap 4, ou funcionaria como um elo de ligação a ele, o que remove a impressão de aparente digressão do cap. 3 para o cap. 4, isto é, parece que Paulo de repente muda de assunto. Princípio exarado nesta interpretação: em lugar do Velho Testamento ser anulado pelo Evangelho, é confirmado por ele.
2. O verso expõe um combate ao antinomismo por parte de Paulo. Lei aqui teria o sentido da expressão da vontade de Deus, como exarada, por exemplo, nos Dez Mandamentos. Essa é, naturalmente, a posição adotada pelos adventistas do sétimo dia.
Depois de falar tudo o que Paulo falou sobre lei e justificação, poderia alguém raciocinar que a lei não teria mais lugar no plano de Deus. Paulo se apressa para contrariar este raciocínio. Suas palavras rechassam falsas inferências tiradas de sua teologia pelos que a ela se opunham. Ele já fizera isto no v. 8. Cremos que esta é a melhor interpretação por pelo menos dois pontos principais:
(1) O v. 31 mantém uma relação lógica com o que Paulo apresentou. Muito natural seria a pergunta: então o que aconteceu com a lei? qual é sua situação atual? o que a fé fez com a lei? excluiu-a tal como fez com a jactância? aboliu-a?
(2) A estrutura do v. 31 combina mais com o que precede e não com o que vem em seguida: “Anulamos, pois [isto é, em vista do que acabamos de expor], a lei pela fé?...” Realmente o cap, 4 não necessita deste tipo de introdução, porque a digressão ali é apenas aparente, e não real. A esta altura seria mais que apropriado para Paulo defrontar o argumento judaico da filiação abraâmica, e a questão da circuncisão, agora dentro de sua exposição do plano divino de salvação.
Bem analisado, a idéia de que a fé confirma o Velho Testamento não é o que o apóstolo tem afirmado, e sim exatamente o contrário: é o Velho Testamento que confirma a fé. Além disso, se tomamos a segunda hipótese como válida, descobrimos que Paulo antecipa a objeção antinomista e a responde sumarizadamente. Detalhadamente ele o fará a partir do cap. 6. Em resumo:
OBJEÇÃO DOS ADVERSÁRIOS: Paulo afirma que quanto mais pecarmos será melhor. Para ele a lei de Deus não tem mais razão de ser.
A RESPOSTA DO APÓSTOLO: Em 3:8 ele não responde à objeção. Apenas recrimina os opontes. Devemos entender que não era hora dele se defender, pois não começara ainda a expor a sua teologia. Em 3:31 ele supre uma resposta sumarizada, como necessária inferência de sua argumentação anterior. No cap. 6 ele entra prá valer na sua contra-objeção; o tema ali é a vitória sobre o pecado. Em 8:1-9 ele volta a contratacar, mostrando que uma vivência no Espírito cumpre a lei. Finalmente em 12:9-15:13 ele oferece uma resposta definitiva, discorrendo como será a vida do crente, no aspecto ético. Com efeito, uma das mais bem elaboradas exposições da ética cristã se encontra neste trecho de Romanos.
CONCLUSÃO: Paulo está certo. O sistema salvífico de Deus é o único que possibilita a justiça da lei ser cumprida no homem.
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